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25.6.11

# 17

Enquanto a vida perversamente invadia os rostos vazios
Enquanto o espaço fluia lentamente sobre corpos imóveis
E as estrelas fluíam perversamente sobre os homens imensos
A paixão não sorria...

Lembrei-me hoje destas palavras. São de um livro de um escritor chamado Brian Aldiss, um livro chamado Renascimento. É um livro de ficção científica, o que pode parecer estranho para quem me conhece, já que não é das ruas literárias que mais frequento. Conheço estes versos de cor porque os li muitas vezes, lia-os de todas as vezes que ia ao quarto do meu filho Afonso, amante do estilo, que durante meses as teve penduradas na parede, num poster. Lembrei-me dele e ocorreram-me estes versos. Já passou cerca de um ano, desde que foi para a Alemanha terminar os estudos em química e continuo a não me conseguir adaptar à solidão. De certa forma, ainda que seja esse o destino natural de um filho, sair de casa e prosseguir uma vida independente, faz-me mais falta o meu filho do que o Eduardo que, esse sim, se despediu da nossa vida de forma prematura e inopinada, diria mesmo nada natural. Ainda que um cancro, como a morte, seja indubitavelmente algo de natural, parecer-nos-á sempre uma espécie de corrupção do normal, uma anomalia, uma incongruência. Seja como for, sinto que ultrapassei melhor a ausência do meu marido. E ainda dou por mim às vezes a preparar ao Afonso o café da manhã ou a bater à porta do quarto antes de entrar. Enfim, dramatizo. Conversamos com frequência, se não é no facebook é por telefone. O que me custa mais é mesmo tomar consciência que é assim que será pelo futuro: facebook, telefone e fins de semana, com sorte. Percebo que é assim que será sozinha nesta casa que se agiganta, neste silêncio que intimida, nesta existência incompleta. Eu e os meus livros e as minhas limpezas. E depois, com sorte, netos. Mas sozinha. Eu e os meus botões. E este écran branco.

18.6.11

#16

Não era este o livro que queria escrever neste momento. Arrumou os 15 cardinais numa muito virtual gaveta e reiniciou. Nestes próximos dias-capítulos ia ser escritora fantasma da sua história pessoal. Verdadeira ou não... O espaço geográfico reduzido a Coimbra, talvez chegasse à Figueira... Sempre na companhia de personagens que seriam falsidades contemporâneas à distância de um fôlego. Ah, chamar-se-ia Eugénia.

7.1.11

# 15

De uma forma ou de outra, com James ou sem ele, a missão tinha atingido um ponto sem retorno e Kate recompos-se do impacto emocional da notícia da morte do colega amante e levantou os olhos resoluta para a paisagem árida do outback australiano. O guia aborígene de olhos vivos, sempre atentíssimo a tudo, percebeu a inquietação da inglesa depois de receber o telefonema. Aproximou-se como quem não quer nada e disse distraidamente, continuando a olhar para a tarefa que tinha em dedos: «Não se preocupe  tanto, sabe, o James não está bem morto». Kate não percebeu imediatamente a frase insólita e fitou incrédula o indígena. «Como?». «O seu amigo não está bem morto», repetiu Killara. «Como é que você sabe da morte do meu amigo?!». 

Era impossível ele ter ouvido o diálogo ao telefone, James acabara de morrer nos antípodas e não estava ninguém por perto quando recebeu a chamada via satélite. Killara continuou a arrumar impassível o seu equipamento enquanto umas dezenas de metros atrás o resto do grupo levantava o acampamento para prosseguir viagem. «Ei! Estou a falar consigo, não me vire as costas, como é que sabe? E o que é que significa isso de não estar bem morto? O que é que se passa?». O velho levantou então a cabeça, que dava mais ou menos pelos ombros de Kate. «Nada, não ligue». «Nada?! Isso é absurdo, acabou de me dizer para eu não me preocupar com a morte de um amigo, nada como?». «Oh, sabe como é, vocês vêm um tipo como eu...». «Vocês quem?». «Vocês, os outros, as pessoas das cidades», disse Killara com um sorriso condescendente que irritou Kate, «olham para nós e desatam logo a partir do princípio que os indígenas carregam verdades profundas e têm relações especiais com o transcendente. E nós fazemos questão de não gorar expectativas, dizemos assim umas coisas incompreensíveis, murmuramos umas rezas, cantamos umas ladainhas, falamos com os espíritos e é um fascínio. É folclore, teatro etnográfico, não ligue». 

Killara era ranger veterano numa reserva natural daquela região, não era propriamente um aldeão ignorante e Kate começou finalmente a perceber que o aborígene, até então extremamente reservado, não só tinha existência pensante e falante, como parecia ser uma peça relevante naquele puzzle. «Ouça, não brinque comigo, ouvi perfeitamente o que me disse há pouco, nunca lhe tinha mencionado esse nome...». «Qual nome?». «James, não brinque comigo, já disse, estou sem paciência». «Devo ter ouvido a sua conversa ao telemóvel». «É impossível, nunca disse o nome, nem a pessoa do outro lado da linha, partindo do princípio, naturalmente, que conseguia ouvir qualquer conversa a uns vinte metros de distância, o que me parece pouco provável!... Além disso não é correcto ouvir as conversas dos outros, grande abelhudo que você me saiu, abelhudo e linguarudo! Então? Explique-se, como é que sabe de James e que mais é que sabe? Quem é você afinal?!». Killara fitou então a furiosa inglesa esguia nos olhos, com o ar mais sério deste mundo e de repente soltou uma gargalhada sonora que pregou Kate ao solo, boquiaberta perante o comportamento extravagante e a vivacidade oral e mental do guia habitualmente soturno, sobretudo naquelas circunstâncias trágicas. «Ouça, desculpe, não vale a pena dramatizar, a vida já tem dramatismo que chegue. Sou Killara Wayne Fitzgerald e não passo de um simples park ranger semi-nativo com um sentido de humor questionável. Mas não se deixe enganar pelos clichês folclóricos, tenho estudos e biblioteca, leio jornais, navego na web, viajei, não passo a vida a apanhar lagartos no deserto e a cantar à lua. Dito isto, não se arrelie tanto com James, como lhe disse, não está exactamente morto, ainda que o pareça, como convém, ao seu MI6 e às outras peças do tabuleiro». Kate despertou do estado de choque. «Mas o que é isso quer dizer? E como diabo é que conhece James ou se ele está morto ou vivo? E como é que sabe do MI6?». «Há mais coisas entre o céu e a terra... Digamos que já vivi muito e sei muita coisa. Sobretudo estou atento, inclusivamente a realidades que desconhece. Para já interessa-lhe mais saber que tem um amigo. Talvez o único neste grupo. Confie em mim e tudo correrá bem».

20.12.10

# 14

Quando Kate soube da morte de James forçou a reacção de espanto. No mundo onde viviam não havia lugar para intuições ou premonições. “A nossa arte é da ordem da ciência”, disseram-lhe vezes sem conta. A ausência de reacção teria por isso uma leitura suspeita, tinha pois de disfarçar sofrimento para que a continuassem a considerar apta e de confiança. Que Kate e James eram mais do que colegas todos sabiam, e era por isso que estariam muito atentos ao que ela fizesse neste momento: estava numa zona cinzenta. O que, na altura em que a tarefa dupla que tinha a desempenhar se aproximava rápida e finalmente de uma conclusão, não era aconselhável. Qualquer falha poderia afastá-la daquilo que agora a movia: sobreviver. Não tinha começado por ser assim, mas… Esperava que James não tivesse percebido que o que lhe acontecera tinha sido por causa do que ela lhe dissera a mais. Quando falara no sírio desmascarara um conhecimento que não podia ter sem estar envolvida. A decisão de abater James antes de ser contactado por esse tal sírio foi tomada poucas horas após a sua indiscrição. E a sua morte esperara cinco longos meses. Quanto tempo iriam demorar a matá-la era o pensamento diário que a lançava numa permanente planificação da fuga. Mas subitamente descobriu-se a chorar, a força do hábito de aguardar aquela notícia afinal não só não diminuía a dor como a aumentava. E não era a preocupação consigo mesma, era a memória de James que preenchera o vazio que julgava ter conseguido criar.

9.12.10

# 13

«Não vá para longe, por favor», disse o inspetor a Dieter, quando foi chamado pela colega, que se debruçava sobre o corpo de James. «Posso atender? É uma amiga com quem estava a falar quando isto sucedeu, desliguei o telefone abruptamente, deve estar preocupada...». «Esteja à vontade, já venho falar consigo, provavelmente terá de ir connosco à sede prestar um depoimento oficial, tem algum problema com isso?». «Não, não, de todo, sou guarda prisional, conheço a rotina e quero ajudar», disse Dieter, que recuperara entretanto a compostura e a habitual fleuma teutónica. «Hannah, olá, desculpa ter desligado daquela maneira, surgiu aqui um contratempo». «Mas está tudo bem?». «Sim, isto é, mais ou menos, mataram o meu vizinho e eu vi tudo, aconteceu quando estávamos a falar, por acaso estava a olhar para a rua e vi tudo, vê lá tu». Do outro lado da linha fez-se silêncio e Dieter aproveitou para perguntar ao inspector, que ali a uns metros, junto ao cadáver desconjuntado, conversava com a colega e um perito forense: «Inspetor, inspetor, desculpe, posso só ir a casa comer qualquer coisa? Estou esfomeado...». Weber fez um aceno positivo com a cabeça. «Olha, Hannah, se calhar não é a melhor altura para falarmos, querem que vá com eles à esquadra prestar declarações, mas não te preocupes, está tudo bem». Desligou e enquanto se dirigia para casa, pensou na curiosa coincidência do Spiegel com a sua carta se encontrar em plena cena do crime. Não conseguia deixar de pensar que isso teria algum significado oculto, ainda que não fosse criatura dada a coisas dissimuladas ou imprevistas.

6.12.10

# 12

Hannah continuava a tentar que Dieter atendesse. O telemóvel ficou sem bateria. Foi à procura do carregador. Não o encontrava. Cada coisa no seu lugar era a sua utopia, um inédito concretizável... Daqui a pouco entrava na Sarin, estava na semana do turno da madrugada... Mas o que é que tinha acontecido? Porque não atendia? Sarin era como chamava à fábrica onde trabalhava, uma linha de produção da indústria farmacêutica, onde fiscalizava a qualidade dos medicamentos. Chamava-lhe Sarin por piada, e com o mesmo negro sentido de humor era esse o nome que adoptara para a sua persona da linha erótica. "Chamo-me Sarin e vou dar-te gás..." Um trabalho de concentração e repetitivo durante o dia, um trabalho de fantasia e improviso à noite. Dois trabalhos porque tinha um objectivo muito claro de destino a dar ao que ganhava. E porque não tinha com quem estar. Na fábrica, incomodava-a o trabalhar fardada, recordava-a o tempo em que estivera presa. Mas aqui tinha a cara tapada para além do corpo, nos tempos de cárcere o que mais a violentava era a falta de privacidade, onde pior do que a verem nua era ter de ver as outras nuas. Finalmente encontrara o carregador, estava ao lado da embalagem de comida para o peixe, que evidentemente deixara fora do sítio, estava na estante dos livros por ler (não deixaria jamais de tentar ser organizada, metade destes livros estavam ordenados alfabeticamente por apelido de autor e depois por ano de escrita do texto) e foi ligar-se à corrente e continuar a tentar falar com ele. Sentou-se no chão e viu que mantinha na mão a comida dos peixes, olhou, talvez por isso, para o aquário e viu o peixe morto que, estranho, estava numa impassível vertical. Dieter atendeu.

6.11.10

# 11

O inspector enfiou o par de bilhetes num saquinho de plástico, colocou-o no caderno, meteu o caderno no bolso interior da gabardine e fitou Afonso friamente. O português, visivelmente assustado com toda aquela situação, esperava no carro da polícia. Weber era um espírito metódico e sistemático, mas também era um pragmático. E, sobretudo, não se perdia em divagações e nunca se distraia. Não tinha um cérebro, mas sim uma unidade central de processamento. Como se fora um scanner humano, imperturbável no meio da confusão que se agigantava em torno do alegado acidente ferroviário, pesquisou a expressão preocupada de Afonso no banco traseiro do Audi cinzento sem distintivos, a forma como mordia os lábios e esfregava a testa enrugada, uma certa expressão de espanto, ou como olhava para um ponto no vazio procurando um sentido para tudo aquilo. Interiormente, o experiente agente da polícia federal alemã, formou então a convicção de que Afonso não tinha qualquer responsabilidade naquela sucessão de acontecimentos, o assassinato de James e a morte de Fasai, mas que sabia mais do que contava. Ou do que ele próprio pensava que sabia. 

O bolseiro português de química explicou sucintamente os contornos do seu conhecimento de Fasai, que parecia não ser aprofundado, apesar de serem parceiros de quarto há cerca de dois meses. Sabia que era holandês, era também aluno do programa europeu de mobilidade de estudantes universitários Erasmus, que era de origem paquistanesa, que era muçulmano aparentemente moderado, que era um indivíduo modesto e reservado e pouco mais disse antes de começar a tropeçar com o nervosismo na língua alemã. Mas chegou a dizer que pensara duas vezes antes de emprestar o carro ao colega, visto não ter ainda confiança suficiente em Fasai. Weber também tinha um detector de mentiras incorporado e, apesar de nunca o mencionar a ninguém no âmbito do processo, intimamente foi formando também a convicção de que o tímido Afonso não só não mentia como não sabia mentir. Afonso, de resto, parecia uma versão pós-adolescente e menos israelita de Woody Allen. Talvez fossem apenas os óculos de grossos aros pretos a dar-lhe esse ar de intelectual angustiado, o inspector não sabia ao certo o que era, mas toda a figura frágil e curvada do português lhe lembrava Woody Allen. Aproximou-se do carro e explicou a Afonso o que se iria passar a seguir. «Sr. Afonso, temos de passar de novo pelo local do crime, depois seguimos para as instalações de Frankfurt da Bundeskriminalamt, onde será oficialmente interrogado. Preciso do seu telemóvel. Quando chegarmos à sede poderá fazer um telefonema». «Mas sou suspeito de alguma coisa?». «Veremos. Quer passar por casa primeiro? Pode ir buscar roupa». O inspector consultou o relógio, faltavam dez minutos para as duas, aspirou um pouco de noite, chamou secamente a colega, que conversava com um perito forense, meteram-se no carro sem uma palavra e arrancaram.

4.11.10

# 10

Albert Weber tinha um caderno por cada homicídio. Um hábito que lhe ficara dos tempos em que se pensava escritor. Nestes novos cadernos colava as fotografias, tomava as notas em letra legível (depois alguém passaria tudo para os procedimentos burocratizados de tratar cada ocorrência: boletim 4A para homicídios, em quadriplicado e com revisão de quatro envolvidos na investigação) e fantasiava a cura dos males do mundo através da descoberta dos culpados dos males mais próximos. Na primeira página do caderno a fotografia do cadáver. E a partir daí fazia a história ao contrário. Talvez por essa não obediência à ordem cronológica, gostava de colar na última página o recorte do jornal que anunciava as efemérides que se celebravam no dia. Era a sua maneira de datar os cadernos. O elemento que mais curiosidade lhe despertava era colocado na terceira página. Depois da fotografia de Fasai Salam que mostrara a Afonso colou na página três





















um bilhete para o teatro?!

29.10.10

# 9

«Senhor Afonso, gostáva-mos que viesse ao local, se não tiver meios de transporte próprios podemos providenciar um». «Não, não é preciso, onde é que é exactamente? E há vítimas?». «Ao fundo da rua Anspacher, na linha de caminho de ferro, preferiamos conversar consigo aqui, por favor». «Ok, já ai vou ter». Não estranhou a insistência do policia quanto à necessidade imperiosa da sua presença no local, pensava apenas em Fasai e vestiu-se à pressa, chamou um táxi e quinze minutos depois chegava ao local. Também não estranhou o grande aparato de policias, bombeiros, peritos forenses e pessoal de remoção, estes últimos aguardando ordem de instâncias superiores para desobstruir a linha.

Pensou, mal chegou ao local, que aquele era um sítio bastante improvável para um acidente daquela natureza, para um carro se encravar num caminho de ferro, visto não existir qualquer passagem rodoviária, a rua acabava ali, e visto existir a umas centenas de metros dali o túnel da Schmidtstrasse. Estranhou também apenas um pouco a presença de polícia criminal. Ainda estava a estranhar e já o estava a abordar um homem enorme de fato, gravata e gabardine, olhos frios e uma irrepreensível cabeça rapada luzidia. «Senhor Afonso? Albert Weber, inspector da divisão de homicídios da Bundeskriminalamt, podemos conversar?», perguntou, ordenando, o campeão de natação. Afonso já estava no país há tempo suficiente para ter ouvido falar no BKA, uma agência federal de alto perfil que perseguia grandes criminosos, terroristas e máfias internacionais, não era a comum policia estadual e definitivamente, estava ali desenquadrada. «É amigo de Fasai Salam?». «Mais ou menos, somos colegas bolseiros universitários em Berlim, estamos aqui a colaborar no Museumsuferfest, no festival do museu Embankment, na parte pirotécnica, mas não diria que é um amigo. O que lhe aconteceu? Pediu-me o carro emprestado...». «Pirotécnica?». «Sim». «É este o seu amigo?», o policia mostrou-lhe o écran de uma pequena máquina digital e Afonso reconheceu o rosto ensanguentado de Fasai. «O seu amigo está morto e tinha uma arma que tem tudo a ver com um homicídio não muito longe daqui. O que é que sabe do seu amigo?». Afonso percebeu então que tinha uma longa noite pela frente.

O solitário Dieter travava na sua vida uma espécie de guerra de terra queimada. Não tanto em relação a ele próprio, aos seus fantasmas, à insegurança incompatível com a função de agente de uma autoridade, ou sequer ao seu passado. Era sobretudo em relação aos outros. Por onde passava não deixava sobreviventes nem víveres, não criava laços. Pelo contrário, timido, mental  e egocêntrico, rebentava com pontes, dinamitando sistematicamente a possibilidade de relacionamentos duradouros. Praticamente não tinha amigos. Bem visto, havia Carl, que já não encontrava há dois anos e com quem ia mantendo uma mais ou menos intensa troca de emails. E Ester, profissional, casada, mãe de três filhos e sem tempo para ele. Na internet tinha público, adversários e parceiros de causas, não tinha propriamente amigos. Patrulhava a web com afinco todas as noites, alimentando um blog sobre política e segurança, controlando as novidades no Facebook e no Twitter, consumindo boletins de assuntos militares e internacionais, de jornais e revistas alemãs ou internacionais (para os quais enviava cartas com frequência), novidades de uma dúzia ou mais de confrarias e associações a que pertencia e que lhe atafulhavam o correio eletrónico. Nem tudo era digital na sua vida. Com os Amigos dos Castelos e Fortificações do Hesse, partia uma vez por mês em expedições por vezes de fim de semana, visitando castelos um pouco por toda a Alemanha, pela França ou pela República Checa, na companhia de grupos de gente civilizada que não se incomodava mutua e fisicamente entre-passeios. Certos sábados frequentava a carreira de tiro, onde também se exercitava no arco. Noutros fins de semana permitia-se um jantar fora com ópera ou cinema. Mas à excepção destas sortidas cuidadosamente preparadas e quase sempre solitárias, Dieter vivia numa cápsula de hiper-comunicação e o território das suas relações especiais cobria-se totalmente com Hannah, o turco Azad que lhe vendia a erva e, claro, os dois cães, possantes (e alemães) monumentos à sua obsessão pela segurança.

O mundo dos outros era, mais que desconfortável, hostil. Cercado pela barbárie, como tal, Dieter achou por bem entricheirar-se. Da infância, da juventude, da escola, da tropa, não restava nada senão terreno minado, desértico ou cheio de crateras. Entre os colegas da cadeia e do futebol semanal, ritual que cumpria sobretudo por uma questão de forma física, não havia ninguém com quem se pudesse relacionar, que partilhasse do seu universo de interesses e que superasse a sua postura reservada e demasiadamente séria, meticulosa e judiciosa. Aos olhos dos outros, no entanto, Dieter era sobretudo um bicho do mato inofensivo, vagamente excêntrico e ingénuo. Tão inofensivo e ingénuo que, dez anos depois de ingressar no corpo de guardas, fazia sobretudo trabalho de secretária. Os seus dias eram normalmente passados à frente de um computador, num departamento administrativo e raramente convivia de perto com as reclusas no espaço prisional, a não ser que estas tivessem de tratar de algum acto burocrático. No entanto, esforçava-se. Ou melhor, esforçou-se, até ao serviço militar, até à morte dos pais pouco após a sua desmobilização e à consciencialização enfim definitiva e amadurecida da sua diferença. Esforçou-se pela ambição de normalidade, pelas expectativas dos outros, e no caso da opção castrense, pelo que achava ser (nunca conversaram sobre o assunto) a vontade e a felicidade do pai, veterano de outras batalhas. Debalde. Não era um homem de acção. Para Dieter, guerra não eram campos de batalha, era pensar sobre táctica e estratégia, escrever e falar sobre ela, era empolgar-se com manobras brilhantes de infantaria dos anais. Nem de propósito, deu-se também a circunstância (ou sorte) de ter cumprido grande parte do serviço militar numa pacata academia de oficiais em Dresden. A coisa mais excitante que lhe acontecia todos os anos eram os 15 dias de férias de Verão, nas quais viajava sempre em passeios solitários pelo seu país ou pelos museus, catedrais e parques naturais da Europa, escrupulosamente organizados pela mesma agência de viagens de sempre, especializada em roteiros para gente com queda para a beleza clássica e avessa a sobressaltos.Viajava, como tal, sobretudo pela Europa. Veneza, Paris, Viena, Budapeste, Lisboa, no seu afã de conservador, ia coleccionando grandes cidades antigas e passados monumentais. O resto do mundo, irremediavelmente desorganizado, era demasiado inquietante.

Seja como for, agora já nem sequer se esforçava muito pelos outros, libertou-se desse constrangimento, abraçou a sua condição rara e até fazia tudo com redobrado prazer. E um ano antes de morrer, quando foi arrastado para esta história, portanto, Dieter era um homem solitário e moderadamente feliz. «Boa noite, Albert Weber, inspector da divisão de homicídios da Bundeskriminalamt, o que é que viu, senhor...?». «Dieter Neumann, moro aqui ao lado, fui eu que vos chamei. O que é que vi? Não sei muito bem, acho que vi tudo. Disse Bundeskriminalamt?...».

28.10.10

# 8

Fasai Salam sabia que tinha de se concentrar em algo que o distanciasse do que acabara de ver, fazer, cumprir e a ordem não era esta e não era aleatória. Listas e associações que o distraíam do que não devia pensar era o seu jogo de meditação. Os filhos únicos de pais envelhecidos são mais criativos no alheamento. Enquanto procurava manter uma condução próxima da imagem dos detectives privados com os seus fatos discreto-incaracterísticos, dos quais só se sente a falta na ausência, dos quais não se é capaz de dizer nada sobre quem os vestia, iniciou a fuga. Noite escura, de tempos a tempos iluminada por neons publicitários de ruínas nas quais se perdeu o acesso a um interruptor, zunideiras lâmpadas de segurança de fábricas, informativas placas faiscantes de distâncias desinteressantes. “Do fundo do coração”. O filme que conduziu o americano à falência. Americano, noite. “A noite americana”. Imaginou que estava a guiar de dia, mas uma cortina técnica transformava em noite esse momento. Pensar em cortina neste país era desaconselhável ou inconveniente? Um americano a falar alemão em Berlim. Um anjo político. “As Asas do Desejo”. Perguntou-se se estaria James naquele momento a seu lado. A ouvir o seu pensamento. A tocá-lo. Estremeceu e espantou-se. Ainda teve tempo para se espantar. O comboio aproximava-se e passou por cima do carro que tinha ficado preso nos carris da linha. Se tivesse tido tempo, teria pensado nos bonecos animados que iniciam a corrida com muita aceleração mas sem velocidade… e já não interessava se eram americanos, do leste ou mesmo manga.

Afonso acordou com o toque do telefone. Perguntavam-lhe se era o dono do carro que era mesmo o seu carro. O Trabant fazia parte de uma aposta que tinha feito com os seus colegas da Universidade de Aveiro. Ia fazer a viagem de regresso do Erasmus de Berlim a Aveiro no Trabant bege. E agora…

25.10.10

# 7

James percebeu entretanto, quando o vizinho lhe mexera e o telemóvel tocara, que deixara de ter poder sobre o seu corpo. Era como uma marioneta com alma a quem tivessem subitamente cortado os fios. Com o impacto do disparo à queima-roupa desabou, jazendo inerte e consciente numa posição improvável. Mas nem por isso desconfortável. Aliás, nem desconfortável nem confortável. Nada, completamente vulnerável e desconjuntado, não sentia coisa alguma. Em contrapartida, tinha a estranha percepção de uma nitidez de pensamento extraordinária. Apesar de não conseguir mexer um único músculo, nunca se sentira tão lúcido e atento. Não tinha dúvidas, deixou de as ter logo após o disparo, de que a bala fizera estragos graves e que provavelmente se alojara na coluna vertebral, um pouco abaixo do pescoço, atravessando a traqueia e talvez destruindo pelo caminho alguma artéria vital. Inusitadamente, pensou em todos estes pormenores anatómicos com frieza e soubera de imediato, antes de desmaiar e sonhar por alguns instantes, que dificilmente escaparia com vida. Não conseguia cheirar o odor salgado metálico tão característico do sangue, que escorria em abundância, nem tão pouco sentia a pele molhada, mas era como se os sentidos não tivessem qualquer importância e a mente fosse tudo. Cheirava através da mente, como quem analisa dados.

Antes de Dieter lhe mexer e da respiração perder importância, James ficara com a cabeça debaixo de um dos braços e o seu campo de visão física reduzia-se a um pedaço do tapete. Mas via tudo em seu redor como se fosse de dia e estava atento aos ínfimos pormenores, a detalhes muito mais mínimos do que a pistola na mão trémula do vizinho, que, além das pantufas, lhe chamou à atenção. Achou curioso identificar a relíquia da II Guerra, por ser algo com que um moribundo à partida não se preocupa em fixar, mesmo um moribundo treinado pelos serviços secretos britânicos para fixar pormenores. De um moribundo espera-se que reveja o filme da sua vida, que faça as pazes com o criador (e James era um anglicano temente), que grite em desespero, por raiva, que espernei, que se arrependa ou que lamente o que deixou por fazer, que lute ou se conforme. Não se espera, à partida, que se concentre nas pupilas dilatadas do vizinho, no som do motor de um Trabant a arrancar ao longe, tão distintamente como se fosse ali a dois metros, ou em reconstituir com racionalidade profissional os detalhes do seu assassinato. James, de resto, não se sentia desesperado. E não era por ser anglicano. Pelo contrário, encontrava-se num estado claro e sereno. A equipa médica de emergência tentava há uns minutos estancar a torrente de sangue que lhe continuava a escorrer pelo corpo e pela roupa, e James maravilhava-se com a sua consciência em expansão. Durante o breve desmaio sonhara com Kate, pensou e viu-a numa planície árida e escura na Austrália, sentada ao lado de um pequeno bosquímano que falava de espíritos, em torno de uma fogueira. «É inútil», disse um dos paramédicos. E foi assim que James ficou a saber que estava morto.

23.10.10

# 6

Com dificuldade em respirar percebeu que estava enterrado num campo verde. A boca tapada por terra e ervas, que afinal eram fios a entrar nas narinas, causando cócegas sem sorriso. Expirou um espirro com a força possível e encontrou uma linha de horizonte. O campo verde era o tapete de entrada da casa. E, não sabia porquê, a casa estava de porta aberta. Amarelo. Vermelho. Preto. Sucessivamente. Manchas de cor a arrumarem-se. Uma figura em movimento apressado mas rigoroso assomou; o vizinho Dieter acabara de subir as escada e aproximava-se dele. Tinha calçadas umas pantufas com a bandeira da Alemanha! Sentiu um calor húmido no ventre e fechou os olhos. Agora tinha frio. Puxou a manta verde que tapava o seu corpo e o de Kate. Recordou que antes de fazerem amor ela lhe tinha dito que ele escolhia onde não estar, em vez de escolher onde estar, porque tinha medo. Medo de quê? Não recordava a resposta. Ela devia ter puxado a manta toda para si, como sempre o fazia, porque ele tinha cada vez mais frio. Aconchegou-se a Kate e sentiu a sua respiração espalhar um cheiro sonoro. Abriu os olhos e viu o enorme rosto ofegante do vizinho a aproximar-se dele enquanto perguntava não percebia o quê. Afasta-te, estás a impedir-me de respirar. Parecia que o tinha ouvido. Afastou-se. Percebeu que mexia em papel. O jornal que tinha causado a queda do candeeiro da mesa da entrada. Sentiu que o tapete estava molhado e não compreendia porquê. Não estava a chover. Ou estava e ele não conseguia ver? De repente pareceu-lhe que chovia vermelho. Fechou os olhos. Zakariya Mudarress devia chegar antes da meia noite. Tinham combinado isso umas horas antes, quando ele o visitara no trabalho, o banco onde era consultor de investimentos de capitais ingleses. Um engodo que lhe permitira mudar-se há cinco meses para aquela casa. Abriu a porta e viu um jovem muito moreno, com sobrancelhas que se juntavam afundando o nariz num rosto nervosamente suado. O que é que ele diz? O que é que ele está a levantar? Voltou a abrir os olhos e viu o vizinho a sentar-se no chão e a pousar a pistola que recordava que lhe mostrara numa visita de cortesia. Compreendia que não tinha aberto a porta a um Zakariya Mudarress que afinal falava afegão, quem o atacara era um desconhecido que lhe dissera o quê? Sentiu novamente calor. Voltou a recuperar os sentidos com o toque do telemóvel. Hannah, preocupada, ligava ininterruptamente para Dieter que estava abandonado numa imobilidade surda. James começou a juntar a esse ruído o som de sirenes.

Faisal Salam entrou no Trabant bege que estacionara numa rua paralela e arrancou em direcção à residência de estudantes onde estavam alojados os colaboradores do Museumsuferfest. Tinha sido o seu colega de quarto da Universidade em Berlim, o português Afonso, que o tinha desafiado a trabalharem no espectáculo final de fogo de artifício. E ele precisava de dinheiro.

13.10.10

# 5

«Todo este mundo e os outros, tudo o que vês e não vês, tudo o que sentes, tudo o que imaginas, o sofrimento atroz e a felicidade mais pura, os animais e os montes, o mar e as estrelas, todas as criaturas, vivas e mortas, tudo o que sempre existiu e existirá, os espíritos e as coisas...». O velho ladainhava quase em surdina, sentado imóvel de pernas cruzadas, fixando o horizonte de sombra e ela deixou de o ouvir, perdeu-se em pensamentos nos pequenos olhos negros do velho, espelhos húmidos reflectindo as chispas de uma casca de árvore que ardia no pequeno fogo improvisado no chão para afastar os animais. A noite estava quente, uma escuridão densa, carregada de nuvens que se atropelavam lentamente num ribombar grave e prolongado sobre a planície semi-desértica. O resto da equipa dormia já nas suas tendas. Enrolada no saco de cama, Kate abraçou os joelhos e pensou em James e na última vez que o vira, cinco meses antes num pub londrino à beira do Tamisa, nas proximidades da babilónica sede do Secret Intelligence Service (SIS), popularmente conhecido por MI 6, onde ambos trabalhavam. Brindaram ao sucesso da operação e despediram-se como dois colegas e não como dois amantes que também eram. «Cuida de ti». «Tu também, não confies no sírio, tenho um mau instinto em relação a ele, adeus», respondeu Kate com vontade de dizer outra coisa, algo como «amo-te».

O velho continuava a murmurar sobre o tempo primordial dos sonhos e sobre os irmãos Kanbi e Jitabidi que trouxeram o fogo do céu. Há dois dias que percorriam aquela zona árida do interior da Nova Gales do Sul. Imaginou como estaria James a sair-se na sua parte da missão. O grito desesperado de uma ave nocturna em missão de rapina fê-la acordar do torpor melancólico em que se deixara envolver com as palavras mágicas do guia aborígene. Resolveu deixar o velho com a sua cantilena e recolher-se para dormir. A busca prosseguia bem cedo na alvorada e Kate tinha o corpo moído dos solavancos do jipe. A estrada há muito que ficara para trás e a situação da caravana não era promissora, com as reservas de combustível a chegarem quase a um ponto de não-retorno. Killara, o velho guia, assegurara durante o jantar que já não estavam longe.

9.10.10

# 4

Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Sempre lhe pareceu suspeito este James. Demasiado recluso de si mesmo, mais recluso do que as mulheres da sua cadeia. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Agora censurava-se por pensar mal da vítima. A convivência com criminosos trouxera-lhe apesar de tudo a memória da culpa que o tornara ateu. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Continuava a procurar apagar o que já não estava nas suas mãos e sentiu a dor da queimadura na mão agravada pelo contacto com a arma. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. Saíu de casa sem saber como. Conseguira o estado de inconsciência com que sempre iludira quem o achava corajoso. Dirigiu-se rapidamente à casa vizinha. James estava caído, com a perna esquerda dobrada numa impossibilidade. Raios, mas que interessa isso agora? Sentiu o cheiro do sangue ainda antes de o ver. Ao lado um exemplar do Der Spiegel. O seu Der Spiegel. O Der Spiegel que tinha publicado a sua carta.

25.9.10

# 3

«Olá Hannah, pareces cansada. Sou eu», disse Dieter enquanto afastava a cortina e distraidamente tomava nota de quem tocava aquela hora incomum à porta de James, o inglês que morava na casa ao lado. Acendeu-se a luz do patamar exterior e reparou que se tratava de um homem magro e alto. Não lhe conseguiu ver as feições, o homem estava de lado e além disso tinha a cabeça coberta pelo capuz do casaco desportivo cinzento. Dieter achou um pouco estranho, por estar bom tempo, mas não deu importância ao facto. «Devias sair mais, passear, ir ao cinema, não te faz nada bem passares a vida fechada em casa...». A porta abriu-se e os dois homens trocaram algumas palavras. Dieter não conseguia ver o vizinho, que permanecia dentro de casa, mas viu o homem alto levantar o braço em direcção a James. Não lhe viu a mão, nem ouviu qualquer barulho fora do comum, mas conseguiu ouvir o estrondo seco de James a cair no chão e o som de algo a estilhaçar-se. O homem alto meteu a mão no bolso do fato de treino e afastou-se, rapidamente mas sem correr e olhando para todos os lados. Dieter vislumbrou um rosto moreno e comprido, um nariz afilado e baixou-se num gesto reflexo, ainda com o telefone encostado à orelha, esperando ansiosamente que o desconhecido não tivesse reparado na luz da sua janela ou no movimento das cortinas. «Dieter, então, queres conversar ou queres que me toque? Nem imaginas o que tenho na mão, comprei um brinquedo novo na internet e chegou hoje, especialmente para ti...». Continuava a ouvir Hannah do outro lado da linha enquanto procurava imobilizar todos os músculos do corpo. Desligou precipitadamente o telemóvel, amarfanhou o charro na palma da mão abafando a dor e manteve-se em completo silêncio. Olhou para o relógio. Era quase meia-noite e os cães já tinham parado de ladrar. Esperou o que lhe pareceram uns minutos e resolveu finalmente arrastar-se até à sala de jantar ao lado. Espreitou pela janela e viu a rua deserta. A porta de James permanecia aberta mas não conseguiu ver mais nada para além da luz que irradiava do hall para o pequeno jardim fronteiro. Sentou-se novamente no chão, recuperou o sangue-frio e ligou para o número de emergência. «O meu nome é Dieter Neumann, moro no número 14 da rua Ruppertshainer e acho que acabei de ser testemunha de um crime, venham depressa com uma ambulância», disse quase num sussurro. De gatas, foi até uma das gavetas da sala e pegou na pequena Sauer 38, uma relíquia dos tempos da II Guerra que herdara do pai e uma das suas várias armas de estimação.

24.9.10

# 2

Pensar em sexo, no seu caso, era falar de sexo. Ligou a Hannah. Conversar com ela era duplamente excitante porque era falar com uma profissional de uma linha erótica que ele sabia que tinha sido condenada por ter morto o próprio marido. Morto porque a traíra e não por a ter agredido ao longo do casamento de toda a vida, mas isso só Dieter sabia. Depois de sair da cadeia, três anos atrás, Hannah tinha ido viver para Darmstadt, onde ninguém a conhecia e onde não queria conhecer ninguém, costumava dizer-lhe. A regularidade irregular era uma das muitas falsidades de Dieter no relacionamento com Hannah e ela disfarçava surpresa sempre que recebia os telefonemas que já aguardava. Foi por isso que desconfiou que algo lhe acontecera quando ele morreu. Nesta noite de Setembro, o telefone tocou e Hannah perguntou um lento e longo e langoroso está. Nesse preciso momento os cães ladraram porque alguém tocou à campainha do vizinho de Dieter.

# 1

Dieter era guarda prisional numa cadeia para mulheres. Era porque já não é. Dieter também era ateu e acreditava que não voltava a ser. Honremos-lhe como tal a crença. Quando estas linhas se escrevem, portanto, Dieter já era. Mas antes de não ser, Dieter era guarda prisional numa cadeia para mulheres nos arredores de Frankfurt. Nesta noite de Setembro, dois anos antes destas linhas, um ano antes de morrer, Dieter respondia furiosamente a um comentário a um artigo do Spiegel online que noticiava a morte de soldados alemães no Afeganistão. Dieter, então com 35 anos, vivia sozinho e passava as noites em frente ao computador, quando não estava de turno ou quando não era dia de futebol de salão com os camaradas do corpo prisional. Tinha por companhia doméstica 157 amigos no Facebook, dois rotweillers e três carpas vermelhas num tanque no quintal das traseiras da sua casa geminada. Antes de ser guarda prisional, Dieter fôra polícia militar do exército e, à sua maneira, era um patriota. Não era um fanático da nação, gostava de viajar na rede e fora dela, cultivava uma postura cosmopolita, tinha-se como moderado, homem tolerante, amante da liberdade e dos valores democráticos, mas nutria um especial orgulho na circunstância de ser alemão e no facto de ter sido soldado. Acabou de responder ao imbecil que se congratulava com as baixas da Deutsches Heer na terra dos talibãs e acendeu um charro de erva. Olhou pela janela e começou a pensar em sexo.