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20.12.10

# 14

Quando Kate soube da morte de James forçou a reacção de espanto. No mundo onde viviam não havia lugar para intuições ou premonições. “A nossa arte é da ordem da ciência”, disseram-lhe vezes sem conta. A ausência de reacção teria por isso uma leitura suspeita, tinha pois de disfarçar sofrimento para que a continuassem a considerar apta e de confiança. Que Kate e James eram mais do que colegas todos sabiam, e era por isso que estariam muito atentos ao que ela fizesse neste momento: estava numa zona cinzenta. O que, na altura em que a tarefa dupla que tinha a desempenhar se aproximava rápida e finalmente de uma conclusão, não era aconselhável. Qualquer falha poderia afastá-la daquilo que agora a movia: sobreviver. Não tinha começado por ser assim, mas… Esperava que James não tivesse percebido que o que lhe acontecera tinha sido por causa do que ela lhe dissera a mais. Quando falara no sírio desmascarara um conhecimento que não podia ter sem estar envolvida. A decisão de abater James antes de ser contactado por esse tal sírio foi tomada poucas horas após a sua indiscrição. E a sua morte esperara cinco longos meses. Quanto tempo iriam demorar a matá-la era o pensamento diário que a lançava numa permanente planificação da fuga. Mas subitamente descobriu-se a chorar, a força do hábito de aguardar aquela notícia afinal não só não diminuía a dor como a aumentava. E não era a preocupação consigo mesma, era a memória de James que preenchera o vazio que julgava ter conseguido criar.

9.12.10

# 13

«Não vá para longe, por favor», disse o inspetor a Dieter, quando foi chamado pela colega, que se debruçava sobre o corpo de James. «Posso atender? É uma amiga com quem estava a falar quando isto sucedeu, desliguei o telefone abruptamente, deve estar preocupada...». «Esteja à vontade, já venho falar consigo, provavelmente terá de ir connosco à sede prestar um depoimento oficial, tem algum problema com isso?». «Não, não, de todo, sou guarda prisional, conheço a rotina e quero ajudar», disse Dieter, que recuperara entretanto a compostura e a habitual fleuma teutónica. «Hannah, olá, desculpa ter desligado daquela maneira, surgiu aqui um contratempo». «Mas está tudo bem?». «Sim, isto é, mais ou menos, mataram o meu vizinho e eu vi tudo, aconteceu quando estávamos a falar, por acaso estava a olhar para a rua e vi tudo, vê lá tu». Do outro lado da linha fez-se silêncio e Dieter aproveitou para perguntar ao inspector, que ali a uns metros, junto ao cadáver desconjuntado, conversava com a colega e um perito forense: «Inspetor, inspetor, desculpe, posso só ir a casa comer qualquer coisa? Estou esfomeado...». Weber fez um aceno positivo com a cabeça. «Olha, Hannah, se calhar não é a melhor altura para falarmos, querem que vá com eles à esquadra prestar declarações, mas não te preocupes, está tudo bem». Desligou e enquanto se dirigia para casa, pensou na curiosa coincidência do Spiegel com a sua carta se encontrar em plena cena do crime. Não conseguia deixar de pensar que isso teria algum significado oculto, ainda que não fosse criatura dada a coisas dissimuladas ou imprevistas.

6.12.10

# 12

Hannah continuava a tentar que Dieter atendesse. O telemóvel ficou sem bateria. Foi à procura do carregador. Não o encontrava. Cada coisa no seu lugar era a sua utopia, um inédito concretizável... Daqui a pouco entrava na Sarin, estava na semana do turno da madrugada... Mas o que é que tinha acontecido? Porque não atendia? Sarin era como chamava à fábrica onde trabalhava, uma linha de produção da indústria farmacêutica, onde fiscalizava a qualidade dos medicamentos. Chamava-lhe Sarin por piada, e com o mesmo negro sentido de humor era esse o nome que adoptara para a sua persona da linha erótica. "Chamo-me Sarin e vou dar-te gás..." Um trabalho de concentração e repetitivo durante o dia, um trabalho de fantasia e improviso à noite. Dois trabalhos porque tinha um objectivo muito claro de destino a dar ao que ganhava. E porque não tinha com quem estar. Na fábrica, incomodava-a o trabalhar fardada, recordava-a o tempo em que estivera presa. Mas aqui tinha a cara tapada para além do corpo, nos tempos de cárcere o que mais a violentava era a falta de privacidade, onde pior do que a verem nua era ter de ver as outras nuas. Finalmente encontrara o carregador, estava ao lado da embalagem de comida para o peixe, que evidentemente deixara fora do sítio, estava na estante dos livros por ler (não deixaria jamais de tentar ser organizada, metade destes livros estavam ordenados alfabeticamente por apelido de autor e depois por ano de escrita do texto) e foi ligar-se à corrente e continuar a tentar falar com ele. Sentou-se no chão e viu que mantinha na mão a comida dos peixes, olhou, talvez por isso, para o aquário e viu o peixe morto que, estranho, estava numa impassível vertical. Dieter atendeu.