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25.10.10

# 7

James percebeu entretanto, quando o vizinho lhe mexera e o telemóvel tocara, que deixara de ter poder sobre o seu corpo. Era como uma marioneta com alma a quem tivessem subitamente cortado os fios. Com o impacto do disparo à queima-roupa desabou, jazendo inerte e consciente numa posição improvável. Mas nem por isso desconfortável. Aliás, nem desconfortável nem confortável. Nada, completamente vulnerável e desconjuntado, não sentia coisa alguma. Em contrapartida, tinha a estranha percepção de uma nitidez de pensamento extraordinária. Apesar de não conseguir mexer um único músculo, nunca se sentira tão lúcido e atento. Não tinha dúvidas, deixou de as ter logo após o disparo, de que a bala fizera estragos graves e que provavelmente se alojara na coluna vertebral, um pouco abaixo do pescoço, atravessando a traqueia e talvez destruindo pelo caminho alguma artéria vital. Inusitadamente, pensou em todos estes pormenores anatómicos com frieza e soubera de imediato, antes de desmaiar e sonhar por alguns instantes, que dificilmente escaparia com vida. Não conseguia cheirar o odor salgado metálico tão característico do sangue, que escorria em abundância, nem tão pouco sentia a pele molhada, mas era como se os sentidos não tivessem qualquer importância e a mente fosse tudo. Cheirava através da mente, como quem analisa dados.

Antes de Dieter lhe mexer e da respiração perder importância, James ficara com a cabeça debaixo de um dos braços e o seu campo de visão física reduzia-se a um pedaço do tapete. Mas via tudo em seu redor como se fosse de dia e estava atento aos ínfimos pormenores, a detalhes muito mais mínimos do que a pistola na mão trémula do vizinho, que, além das pantufas, lhe chamou à atenção. Achou curioso identificar a relíquia da II Guerra, por ser algo com que um moribundo à partida não se preocupa em fixar, mesmo um moribundo treinado pelos serviços secretos britânicos para fixar pormenores. De um moribundo espera-se que reveja o filme da sua vida, que faça as pazes com o criador (e James era um anglicano temente), que grite em desespero, por raiva, que espernei, que se arrependa ou que lamente o que deixou por fazer, que lute ou se conforme. Não se espera, à partida, que se concentre nas pupilas dilatadas do vizinho, no som do motor de um Trabant a arrancar ao longe, tão distintamente como se fosse ali a dois metros, ou em reconstituir com racionalidade profissional os detalhes do seu assassinato. James, de resto, não se sentia desesperado. E não era por ser anglicano. Pelo contrário, encontrava-se num estado claro e sereno. A equipa médica de emergência tentava há uns minutos estancar a torrente de sangue que lhe continuava a escorrer pelo corpo e pela roupa, e James maravilhava-se com a sua consciência em expansão. Durante o breve desmaio sonhara com Kate, pensou e viu-a numa planície árida e escura na Austrália, sentada ao lado de um pequeno bosquímano que falava de espíritos, em torno de uma fogueira. «É inútil», disse um dos paramédicos. E foi assim que James ficou a saber que estava morto.