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6.11.10

# 11

O inspector enfiou o par de bilhetes num saquinho de plástico, colocou-o no caderno, meteu o caderno no bolso interior da gabardine e fitou Afonso friamente. O português, visivelmente assustado com toda aquela situação, esperava no carro da polícia. Weber era um espírito metódico e sistemático, mas também era um pragmático. E, sobretudo, não se perdia em divagações e nunca se distraia. Não tinha um cérebro, mas sim uma unidade central de processamento. Como se fora um scanner humano, imperturbável no meio da confusão que se agigantava em torno do alegado acidente ferroviário, pesquisou a expressão preocupada de Afonso no banco traseiro do Audi cinzento sem distintivos, a forma como mordia os lábios e esfregava a testa enrugada, uma certa expressão de espanto, ou como olhava para um ponto no vazio procurando um sentido para tudo aquilo. Interiormente, o experiente agente da polícia federal alemã, formou então a convicção de que Afonso não tinha qualquer responsabilidade naquela sucessão de acontecimentos, o assassinato de James e a morte de Fasai, mas que sabia mais do que contava. Ou do que ele próprio pensava que sabia. 

O bolseiro português de química explicou sucintamente os contornos do seu conhecimento de Fasai, que parecia não ser aprofundado, apesar de serem parceiros de quarto há cerca de dois meses. Sabia que era holandês, era também aluno do programa europeu de mobilidade de estudantes universitários Erasmus, que era de origem paquistanesa, que era muçulmano aparentemente moderado, que era um indivíduo modesto e reservado e pouco mais disse antes de começar a tropeçar com o nervosismo na língua alemã. Mas chegou a dizer que pensara duas vezes antes de emprestar o carro ao colega, visto não ter ainda confiança suficiente em Fasai. Weber também tinha um detector de mentiras incorporado e, apesar de nunca o mencionar a ninguém no âmbito do processo, intimamente foi formando também a convicção de que o tímido Afonso não só não mentia como não sabia mentir. Afonso, de resto, parecia uma versão pós-adolescente e menos israelita de Woody Allen. Talvez fossem apenas os óculos de grossos aros pretos a dar-lhe esse ar de intelectual angustiado, o inspector não sabia ao certo o que era, mas toda a figura frágil e curvada do português lhe lembrava Woody Allen. Aproximou-se do carro e explicou a Afonso o que se iria passar a seguir. «Sr. Afonso, temos de passar de novo pelo local do crime, depois seguimos para as instalações de Frankfurt da Bundeskriminalamt, onde será oficialmente interrogado. Preciso do seu telemóvel. Quando chegarmos à sede poderá fazer um telefonema». «Mas sou suspeito de alguma coisa?». «Veremos. Quer passar por casa primeiro? Pode ir buscar roupa». O inspector consultou o relógio, faltavam dez minutos para as duas, aspirou um pouco de noite, chamou secamente a colega, que conversava com um perito forense, meteram-se no carro sem uma palavra e arrancaram.

4.11.10

# 10

Albert Weber tinha um caderno por cada homicídio. Um hábito que lhe ficara dos tempos em que se pensava escritor. Nestes novos cadernos colava as fotografias, tomava as notas em letra legível (depois alguém passaria tudo para os procedimentos burocratizados de tratar cada ocorrência: boletim 4A para homicídios, em quadriplicado e com revisão de quatro envolvidos na investigação) e fantasiava a cura dos males do mundo através da descoberta dos culpados dos males mais próximos. Na primeira página do caderno a fotografia do cadáver. E a partir daí fazia a história ao contrário. Talvez por essa não obediência à ordem cronológica, gostava de colar na última página o recorte do jornal que anunciava as efemérides que se celebravam no dia. Era a sua maneira de datar os cadernos. O elemento que mais curiosidade lhe despertava era colocado na terceira página. Depois da fotografia de Fasai Salam que mostrara a Afonso colou na página três





















um bilhete para o teatro?!