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29.10.10

# 9

«Senhor Afonso, gostáva-mos que viesse ao local, se não tiver meios de transporte próprios podemos providenciar um». «Não, não é preciso, onde é que é exactamente? E há vítimas?». «Ao fundo da rua Anspacher, na linha de caminho de ferro, preferiamos conversar consigo aqui, por favor». «Ok, já ai vou ter». Não estranhou a insistência do policia quanto à necessidade imperiosa da sua presença no local, pensava apenas em Fasai e vestiu-se à pressa, chamou um táxi e quinze minutos depois chegava ao local. Também não estranhou o grande aparato de policias, bombeiros, peritos forenses e pessoal de remoção, estes últimos aguardando ordem de instâncias superiores para desobstruir a linha.

Pensou, mal chegou ao local, que aquele era um sítio bastante improvável para um acidente daquela natureza, para um carro se encravar num caminho de ferro, visto não existir qualquer passagem rodoviária, a rua acabava ali, e visto existir a umas centenas de metros dali o túnel da Schmidtstrasse. Estranhou também apenas um pouco a presença de polícia criminal. Ainda estava a estranhar e já o estava a abordar um homem enorme de fato, gravata e gabardine, olhos frios e uma irrepreensível cabeça rapada luzidia. «Senhor Afonso? Albert Weber, inspector da divisão de homicídios da Bundeskriminalamt, podemos conversar?», perguntou, ordenando, o campeão de natação. Afonso já estava no país há tempo suficiente para ter ouvido falar no BKA, uma agência federal de alto perfil que perseguia grandes criminosos, terroristas e máfias internacionais, não era a comum policia estadual e definitivamente, estava ali desenquadrada. «É amigo de Fasai Salam?». «Mais ou menos, somos colegas bolseiros universitários em Berlim, estamos aqui a colaborar no Museumsuferfest, no festival do museu Embankment, na parte pirotécnica, mas não diria que é um amigo. O que lhe aconteceu? Pediu-me o carro emprestado...». «Pirotécnica?». «Sim». «É este o seu amigo?», o policia mostrou-lhe o écran de uma pequena máquina digital e Afonso reconheceu o rosto ensanguentado de Fasai. «O seu amigo está morto e tinha uma arma que tem tudo a ver com um homicídio não muito longe daqui. O que é que sabe do seu amigo?». Afonso percebeu então que tinha uma longa noite pela frente.

O solitário Dieter travava na sua vida uma espécie de guerra de terra queimada. Não tanto em relação a ele próprio, aos seus fantasmas, à insegurança incompatível com a função de agente de uma autoridade, ou sequer ao seu passado. Era sobretudo em relação aos outros. Por onde passava não deixava sobreviventes nem víveres, não criava laços. Pelo contrário, timido, mental  e egocêntrico, rebentava com pontes, dinamitando sistematicamente a possibilidade de relacionamentos duradouros. Praticamente não tinha amigos. Bem visto, havia Carl, que já não encontrava há dois anos e com quem ia mantendo uma mais ou menos intensa troca de emails. E Ester, profissional, casada, mãe de três filhos e sem tempo para ele. Na internet tinha público, adversários e parceiros de causas, não tinha propriamente amigos. Patrulhava a web com afinco todas as noites, alimentando um blog sobre política e segurança, controlando as novidades no Facebook e no Twitter, consumindo boletins de assuntos militares e internacionais, de jornais e revistas alemãs ou internacionais (para os quais enviava cartas com frequência), novidades de uma dúzia ou mais de confrarias e associações a que pertencia e que lhe atafulhavam o correio eletrónico. Nem tudo era digital na sua vida. Com os Amigos dos Castelos e Fortificações do Hesse, partia uma vez por mês em expedições por vezes de fim de semana, visitando castelos um pouco por toda a Alemanha, pela França ou pela República Checa, na companhia de grupos de gente civilizada que não se incomodava mutua e fisicamente entre-passeios. Certos sábados frequentava a carreira de tiro, onde também se exercitava no arco. Noutros fins de semana permitia-se um jantar fora com ópera ou cinema. Mas à excepção destas sortidas cuidadosamente preparadas e quase sempre solitárias, Dieter vivia numa cápsula de hiper-comunicação e o território das suas relações especiais cobria-se totalmente com Hannah, o turco Azad que lhe vendia a erva e, claro, os dois cães, possantes (e alemães) monumentos à sua obsessão pela segurança.

O mundo dos outros era, mais que desconfortável, hostil. Cercado pela barbárie, como tal, Dieter achou por bem entricheirar-se. Da infância, da juventude, da escola, da tropa, não restava nada senão terreno minado, desértico ou cheio de crateras. Entre os colegas da cadeia e do futebol semanal, ritual que cumpria sobretudo por uma questão de forma física, não havia ninguém com quem se pudesse relacionar, que partilhasse do seu universo de interesses e que superasse a sua postura reservada e demasiadamente séria, meticulosa e judiciosa. Aos olhos dos outros, no entanto, Dieter era sobretudo um bicho do mato inofensivo, vagamente excêntrico e ingénuo. Tão inofensivo e ingénuo que, dez anos depois de ingressar no corpo de guardas, fazia sobretudo trabalho de secretária. Os seus dias eram normalmente passados à frente de um computador, num departamento administrativo e raramente convivia de perto com as reclusas no espaço prisional, a não ser que estas tivessem de tratar de algum acto burocrático. No entanto, esforçava-se. Ou melhor, esforçou-se, até ao serviço militar, até à morte dos pais pouco após a sua desmobilização e à consciencialização enfim definitiva e amadurecida da sua diferença. Esforçou-se pela ambição de normalidade, pelas expectativas dos outros, e no caso da opção castrense, pelo que achava ser (nunca conversaram sobre o assunto) a vontade e a felicidade do pai, veterano de outras batalhas. Debalde. Não era um homem de acção. Para Dieter, guerra não eram campos de batalha, era pensar sobre táctica e estratégia, escrever e falar sobre ela, era empolgar-se com manobras brilhantes de infantaria dos anais. Nem de propósito, deu-se também a circunstância (ou sorte) de ter cumprido grande parte do serviço militar numa pacata academia de oficiais em Dresden. A coisa mais excitante que lhe acontecia todos os anos eram os 15 dias de férias de Verão, nas quais viajava sempre em passeios solitários pelo seu país ou pelos museus, catedrais e parques naturais da Europa, escrupulosamente organizados pela mesma agência de viagens de sempre, especializada em roteiros para gente com queda para a beleza clássica e avessa a sobressaltos.Viajava, como tal, sobretudo pela Europa. Veneza, Paris, Viena, Budapeste, Lisboa, no seu afã de conservador, ia coleccionando grandes cidades antigas e passados monumentais. O resto do mundo, irremediavelmente desorganizado, era demasiado inquietante.

Seja como for, agora já nem sequer se esforçava muito pelos outros, libertou-se desse constrangimento, abraçou a sua condição rara e até fazia tudo com redobrado prazer. E um ano antes de morrer, quando foi arrastado para esta história, portanto, Dieter era um homem solitário e moderadamente feliz. «Boa noite, Albert Weber, inspector da divisão de homicídios da Bundeskriminalamt, o que é que viu, senhor...?». «Dieter Neumann, moro aqui ao lado, fui eu que vos chamei. O que é que vi? Não sei muito bem, acho que vi tudo. Disse Bundeskriminalamt?...».