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25.6.11

# 17

Enquanto a vida perversamente invadia os rostos vazios
Enquanto o espaço fluia lentamente sobre corpos imóveis
E as estrelas fluíam perversamente sobre os homens imensos
A paixão não sorria...

Lembrei-me hoje destas palavras. São de um livro de um escritor chamado Brian Aldiss, um livro chamado Renascimento. É um livro de ficção científica, o que pode parecer estranho para quem me conhece, já que não é das ruas literárias que mais frequento. Conheço estes versos de cor porque os li muitas vezes, lia-os de todas as vezes que ia ao quarto do meu filho Afonso, amante do estilo, que durante meses as teve penduradas na parede, num poster. Lembrei-me dele e ocorreram-me estes versos. Já passou cerca de um ano, desde que foi para a Alemanha terminar os estudos em química e continuo a não me conseguir adaptar à solidão. De certa forma, ainda que seja esse o destino natural de um filho, sair de casa e prosseguir uma vida independente, faz-me mais falta o meu filho do que o Eduardo que, esse sim, se despediu da nossa vida de forma prematura e inopinada, diria mesmo nada natural. Ainda que um cancro, como a morte, seja indubitavelmente algo de natural, parecer-nos-á sempre uma espécie de corrupção do normal, uma anomalia, uma incongruência. Seja como for, sinto que ultrapassei melhor a ausência do meu marido. E ainda dou por mim às vezes a preparar ao Afonso o café da manhã ou a bater à porta do quarto antes de entrar. Enfim, dramatizo. Conversamos com frequência, se não é no facebook é por telefone. O que me custa mais é mesmo tomar consciência que é assim que será pelo futuro: facebook, telefone e fins de semana, com sorte. Percebo que é assim que será sozinha nesta casa que se agiganta, neste silêncio que intimida, nesta existência incompleta. Eu e os meus livros e as minhas limpezas. E depois, com sorte, netos. Mas sozinha. Eu e os meus botões. E este écran branco.

18.6.11

#16

Não era este o livro que queria escrever neste momento. Arrumou os 15 cardinais numa muito virtual gaveta e reiniciou. Nestes próximos dias-capítulos ia ser escritora fantasma da sua história pessoal. Verdadeira ou não... O espaço geográfico reduzido a Coimbra, talvez chegasse à Figueira... Sempre na companhia de personagens que seriam falsidades contemporâneas à distância de um fôlego. Ah, chamar-se-ia Eugénia.

7.1.11

# 15

De uma forma ou de outra, com James ou sem ele, a missão tinha atingido um ponto sem retorno e Kate recompos-se do impacto emocional da notícia da morte do colega amante e levantou os olhos resoluta para a paisagem árida do outback australiano. O guia aborígene de olhos vivos, sempre atentíssimo a tudo, percebeu a inquietação da inglesa depois de receber o telefonema. Aproximou-se como quem não quer nada e disse distraidamente, continuando a olhar para a tarefa que tinha em dedos: «Não se preocupe  tanto, sabe, o James não está bem morto». Kate não percebeu imediatamente a frase insólita e fitou incrédula o indígena. «Como?». «O seu amigo não está bem morto», repetiu Killara. «Como é que você sabe da morte do meu amigo?!». 

Era impossível ele ter ouvido o diálogo ao telefone, James acabara de morrer nos antípodas e não estava ninguém por perto quando recebeu a chamada via satélite. Killara continuou a arrumar impassível o seu equipamento enquanto umas dezenas de metros atrás o resto do grupo levantava o acampamento para prosseguir viagem. «Ei! Estou a falar consigo, não me vire as costas, como é que sabe? E o que é que significa isso de não estar bem morto? O que é que se passa?». O velho levantou então a cabeça, que dava mais ou menos pelos ombros de Kate. «Nada, não ligue». «Nada?! Isso é absurdo, acabou de me dizer para eu não me preocupar com a morte de um amigo, nada como?». «Oh, sabe como é, vocês vêm um tipo como eu...». «Vocês quem?». «Vocês, os outros, as pessoas das cidades», disse Killara com um sorriso condescendente que irritou Kate, «olham para nós e desatam logo a partir do princípio que os indígenas carregam verdades profundas e têm relações especiais com o transcendente. E nós fazemos questão de não gorar expectativas, dizemos assim umas coisas incompreensíveis, murmuramos umas rezas, cantamos umas ladainhas, falamos com os espíritos e é um fascínio. É folclore, teatro etnográfico, não ligue». 

Killara era ranger veterano numa reserva natural daquela região, não era propriamente um aldeão ignorante e Kate começou finalmente a perceber que o aborígene, até então extremamente reservado, não só tinha existência pensante e falante, como parecia ser uma peça relevante naquele puzzle. «Ouça, não brinque comigo, ouvi perfeitamente o que me disse há pouco, nunca lhe tinha mencionado esse nome...». «Qual nome?». «James, não brinque comigo, já disse, estou sem paciência». «Devo ter ouvido a sua conversa ao telemóvel». «É impossível, nunca disse o nome, nem a pessoa do outro lado da linha, partindo do princípio, naturalmente, que conseguia ouvir qualquer conversa a uns vinte metros de distância, o que me parece pouco provável!... Além disso não é correcto ouvir as conversas dos outros, grande abelhudo que você me saiu, abelhudo e linguarudo! Então? Explique-se, como é que sabe de James e que mais é que sabe? Quem é você afinal?!». Killara fitou então a furiosa inglesa esguia nos olhos, com o ar mais sério deste mundo e de repente soltou uma gargalhada sonora que pregou Kate ao solo, boquiaberta perante o comportamento extravagante e a vivacidade oral e mental do guia habitualmente soturno, sobretudo naquelas circunstâncias trágicas. «Ouça, desculpe, não vale a pena dramatizar, a vida já tem dramatismo que chegue. Sou Killara Wayne Fitzgerald e não passo de um simples park ranger semi-nativo com um sentido de humor questionável. Mas não se deixe enganar pelos clichês folclóricos, tenho estudos e biblioteca, leio jornais, navego na web, viajei, não passo a vida a apanhar lagartos no deserto e a cantar à lua. Dito isto, não se arrelie tanto com James, como lhe disse, não está exactamente morto, ainda que o pareça, como convém, ao seu MI6 e às outras peças do tabuleiro». Kate despertou do estado de choque. «Mas o que é isso quer dizer? E como diabo é que conhece James ou se ele está morto ou vivo? E como é que sabe do MI6?». «Há mais coisas entre o céu e a terra... Digamos que já vivi muito e sei muita coisa. Sobretudo estou atento, inclusivamente a realidades que desconhece. Para já interessa-lhe mais saber que tem um amigo. Talvez o único neste grupo. Confie em mim e tudo correrá bem».