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23.10.10

# 6

Com dificuldade em respirar percebeu que estava enterrado num campo verde. A boca tapada por terra e ervas, que afinal eram fios a entrar nas narinas, causando cócegas sem sorriso. Expirou um espirro com a força possível e encontrou uma linha de horizonte. O campo verde era o tapete de entrada da casa. E, não sabia porquê, a casa estava de porta aberta. Amarelo. Vermelho. Preto. Sucessivamente. Manchas de cor a arrumarem-se. Uma figura em movimento apressado mas rigoroso assomou; o vizinho Dieter acabara de subir as escada e aproximava-se dele. Tinha calçadas umas pantufas com a bandeira da Alemanha! Sentiu um calor húmido no ventre e fechou os olhos. Agora tinha frio. Puxou a manta verde que tapava o seu corpo e o de Kate. Recordou que antes de fazerem amor ela lhe tinha dito que ele escolhia onde não estar, em vez de escolher onde estar, porque tinha medo. Medo de quê? Não recordava a resposta. Ela devia ter puxado a manta toda para si, como sempre o fazia, porque ele tinha cada vez mais frio. Aconchegou-se a Kate e sentiu a sua respiração espalhar um cheiro sonoro. Abriu os olhos e viu o enorme rosto ofegante do vizinho a aproximar-se dele enquanto perguntava não percebia o quê. Afasta-te, estás a impedir-me de respirar. Parecia que o tinha ouvido. Afastou-se. Percebeu que mexia em papel. O jornal que tinha causado a queda do candeeiro da mesa da entrada. Sentiu que o tapete estava molhado e não compreendia porquê. Não estava a chover. Ou estava e ele não conseguia ver? De repente pareceu-lhe que chovia vermelho. Fechou os olhos. Zakariya Mudarress devia chegar antes da meia noite. Tinham combinado isso umas horas antes, quando ele o visitara no trabalho, o banco onde era consultor de investimentos de capitais ingleses. Um engodo que lhe permitira mudar-se há cinco meses para aquela casa. Abriu a porta e viu um jovem muito moreno, com sobrancelhas que se juntavam afundando o nariz num rosto nervosamente suado. O que é que ele diz? O que é que ele está a levantar? Voltou a abrir os olhos e viu o vizinho a sentar-se no chão e a pousar a pistola que recordava que lhe mostrara numa visita de cortesia. Compreendia que não tinha aberto a porta a um Zakariya Mudarress que afinal falava afegão, quem o atacara era um desconhecido que lhe dissera o quê? Sentiu novamente calor. Voltou a recuperar os sentidos com o toque do telemóvel. Hannah, preocupada, ligava ininterruptamente para Dieter que estava abandonado numa imobilidade surda. James começou a juntar a esse ruído o som de sirenes.

Faisal Salam entrou no Trabant bege que estacionara numa rua paralela e arrancou em direcção à residência de estudantes onde estavam alojados os colaboradores do Museumsuferfest. Tinha sido o seu colega de quarto da Universidade em Berlim, o português Afonso, que o tinha desafiado a trabalharem no espectáculo final de fogo de artifício. E ele precisava de dinheiro.